Aqui, nesta atmosfera, receio a impossibilidade da escrita.
As cores celestiais e as cores da água refletem-se de modo simétrico, simbiótico, até mesmo narcísico, como se a água se apoderasse de todas as lides pesqueiras ancestrais e com este saber enredasse a luz do Sol, tingindo a neblina ténue que se estende, tecendo uma toalha recortada por meandros e canaviais.
Vou sulcando estas águas calmas rumo ao cais, mencionando aos meus companheiros e marinheiros a existência evidente da Lua Nascente sobre os montes da Freita, e a luz do Sol Poente sobre o Atlântico, como se não bastasse o quadro natural , cíclico e regular, dos astros mais próximos e a sua previsibilidade, como se necessário fosse reafirmar a realidade, não vá esta esgeirar-se, exercitando mais um dos truques que nos iludem a existência.
Mas, discretamente, todos sabemos da extraordinária verdade que nos assiste, a Lua rodopiando em redor da Terra e a Terra rodopiando e transladando-se em redor do Sol, e nós aqui, flutuando neste espaço, tomando a realidade como narcótico e duvidando da nossa própria presença, levados pelo vento que captamos com as nossas próprias mãos, folgando velas, caçando escotas, arribando no vento suave de fim de tarde outonal. Nada mais simples e verdadeiro e no entanto duvidamos que seja possível, que possa ser tão belo e gratificante, que possa trazer a felicidade por um minuto que seja. Evitamos a dimensão cósmica da existência, pois esta não contribui para o PIB.
A liberdade passa por aqui, pela consciência de que não vivemos a plenitude das coisas e do que nos envolve, de que também fazemos parte integrante, de tal modo que já não sei onde comecei e onde acabo, nem o norte se atreve a ser apenas uma direção, nem o nadir se afirma convicto da sua natureza.
Uma taínha salta agitando a quietude da água e interrompendo a consciência do tempo local. Outro salto, e ainda um outro salto. São sempre três saltos, digo. Bem, sempre, sempre… mas na grande maioria das vezes a taínha salta sempre três vezes. È uma espécie de lei natural das taínhas. E dos carteiros, dizem ao meu lado. Interrogo-me sobre a vivência das taínhas naquela água que já foi um jardim verdejante, águas tépidas onde as marés se sentiam já esvanecendo, no topo Norte do estuário a que chamamos Ria, e onde eu deslizava de barbatanas, com os amigos de então, caçando taínhas e enguias de quilo. E os carteiros já não trazem telegramas, e ainda bem. Telegramas para mim são a guerra de África e os gritos aflitos das mães que os recebiam.
Outra realidade a de hoje.
Hoje deslizamos na água dirigindo um artefacto esplêndido, que se move sob a força do vento, consubstanciando uma arte que se chama velejar, velas, ar, barco e nós.
A luz continuava a sua digressão para Norte transformando-se em um azul anilado, contrariado pelo luar e matizado pelo vermelho cada vez mais fogo que se esmorece.
Cai o vento.
Utilizamos a pagaia e o tempo agora é das galeras, dos imensos remos que se manejavam ao som de tambores e marulhar de correntes. O preço a pagar pela dimensão imperial dos humanos, seres que se dizem sociáveis na sua essência e de facto, aqui estamos nós, ali estavam os escravos e os senhores nos tempos mais remotos, e apenas se passaram uns meros segundos se contarmos com a História das coisas.
Trazemos um lastro residual das indecisões e decisões mal tomadas ao longo do Tempo e portanto nada de mais simples na explicação das nossas limitações, sem necessitarmos de derramar sobre a existência uma lógica interminável de ideologias.
Nestas viagens pela Ria, simbiótica e narcótica, temos tempo para tudo.
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