Memórias da pena escrita

 

Este texto, o que se segue, foi escrito num tempo antigo, na viragem do sec XX para o sec XXI. Neste tempo, a palavra escrita e publicada ocupava muito do espaço mediático. Jornais, revistas, folhetos, brochuras, disseminavam o pensamento e as reflexões sobre o mundo que acontecia. O tempo era mais longo, as notícias sedimentavam e demoravam sobre as mesas dos cafés, das salas de espera, das salas de jantar, estimulando o debate durante horas, dias, por vezes semanas. Lia-se com voracidade, os comentários na televisão eram raríssimos, as notícias e os eventos eram comentados no dia-a-dia, entre duas partidas de ténis, entre a entrega de um projeto na Câmara, entre o desenho de uma mesa para uma sala de jantar, ou o apuramento programática de um plano de pormenor. Das reflexões, conclusões e conversas em que ia participando, surgiam alguns textos cujo destino era ditado pela generosidade e curiosidade de alguns diretores de jornais que conhecia e que me desafiavam para a escrita ... pelo fundo acolchoado de uma funda gaveta ou simplesmente esquecidos no monte de papeis que teimamos em manter sobre a secretária.

Eis um destes textos, ressuscitado do fundo de uma dessas gavetas ... sem edição.

Comemoração do dia mundial da Arquitectura, NAAV - núcleo de arquitetos de Aveiro

Biblioteca Municipal de Ovar, outubro de 1999

 Os Caminhos da Àgua

 A identificação de uma cidade é feita muitas das vezes através de uma palavra ou frase, mas, procurar para cada cidade uma única palavra que a defina obriga a um arriscado exercício de síntese. No entanto, o imaginário das cidades, amplo motor de busca, desenvolvido, também a partir das tensões e frustrações próprias de cada cidade, suporta a meu ver a legitimidade deste exercício. 

 Gostaria portanto de partilhar convosco esta tarefa; a de encontrar uma palavra para definir uma cidade. Se conseguirmos deste modo, levantar um pouco o véu a rigores científicos abrangentes e complexos, tantas vezes inibidores de espontaneidade no pensamento, e encontrar contributos para um maior grau de identificação da cidade, estaremos também a identificar melhor o nosso papel como cidadãos.

 E, se como dizia Agostinho da Silva, o “Homem foi feito para pensar” ...pensemos portanto, e por exemplo na cidade de... Lisboa. Wim Wenders arriscou a sonoridade de Lisboa num Filme, eu, mais ao modo de Tanner arriscaria a Luz. Para a cidade de Lisboa proponho LUMINOSIDADE. Aliás, os sons de Lisboa e luz boa são fatalmente semelhantes. Pensemos também em Veneza. Para Veneza proponho a palavra...IMPONDERABILIDADE. Para Aveiro tenho a palavra NAVEGABILIDADE,  para o Porto a palavra... PORTO.

 E esta cidade, Ovar ? Não tenho dúvidas quanto à existência de um forte e peculiar imaginário Vareiro, até porque sei que esta cidade viveu e vive momentos de tensão e frustação permanentes. Mas, para Ovar, uma grande     ìntimidade inibe-me de arriscar uma única palavra. Protejo-me portanto com duas palavras;  PERMEABILIDADE E FLUIDEZ.

Permeabilidade, não só geológica mas também uma permeabilidade própria dos Vareiros, permeabilidade da estrutura urbana. Fluxos e refluxos de marés, de riquezas,  de caminhos e movimentos.

 Ovar é uma cidade que nasceu com os pés nas águas de um mar que se foi afastando e transformando em RIA. Um Mar interior. Esta circunstância liga-nos ao mundo das cidades que se desenvolveram em deltas e Rias e com elas poderemos aprender tipos de relacionamento com o espaço natural que as envolve, sem com isso, perdermos o carácter do que nos é próprio.

Se a água se tem vindo a afastar, lentamente, derivando os modos de ocupação e expansão para longe de um imaginário de algas de peixes e de aves, terá a cidade, se quer manter o caràcter que lhe esteve na origem, de se reaproximar da àgua, iniciando uma redescoberta de si mesma.

 

Este conceito de aproximação não poderá no entanto ser entendido e muito menos materializado como um avanço de novas expansões urbanas, em correria desenfreada até à borda de água. Não é esta a ideia, até porque a sensíbilidade e riqueza do ecosistema existente, num espaço de ambiguidades fronteiriças entre a terra e a àgua, de uma enorme riqueza comtemplativa, não nos permitirá nunca este tipo de aproximação.

 

Temos portanto um problema, o de saber até que ponto será permeável o reatar de relações entre a Ria e esta cidade.


A Ria foi uma grande via de comunicação. A ria promovia um intenso fervilhar de actividades diversificadas. Foi uma enorme fonte de riqueza. Promoveu a consolidação de aglomerados urbanos.

Como será que hoje a poderemos reabilitar e redescobrir?

 O segredo poderá estar numa análise mais atenta a palavras como Carregal, Areínho, Puxadouro, Marinha, Ribeira, Entráguas, Tijosa, S. Roque, Moita. Estes vocábulos significam muito mais do que os lugares e sítios a que se referem. Significam a meu ver diferentes modos de relacionamento entre terra e àgua. Se uns são terminais de transporte outros surgiram na consolidação de celebrações religiosas, de festa e lazer, outros ainda estiveram, na origem, relacionados com a carpintaria naval.

 Clarificando, ou talvez não, arriscaria aqui a palavra flutuabilidade. A ria poderá novamente ser uma importante via de comunicação? Os lugares referidos estão por descobrir numa lógica de redescoberta da própria cidade?

E, na gestão dos espaços da cidade, porque nos distraímos por vezes em questões ridiculamente menores, desprovidas de sentido e não nos debruçamos sobre o que é de facto importante para a Cidade?

Poderiamos apostar na redescoberta da paisagem e na arquitectura paisagista, na redescoberta e defesa estratégica da navegabilidade da Ria e numa Escola de Vela, que projecte a recuperação de modos de navegar, reaprendendo a navegação em embarcações, quer as representantivas de estruturas produtivas tradicionais quer as de recreio, que também representam estas últimas, um esquecido e inestimável valor patrimonial. Redescobrir a carpintaria naval na preservação destas embarcações, potenciando novas actividades na Ria, relacionadas com a ecologia e com a preservação do meio ambiente, com a biologia, com a agricultura, etc, etc,...

 Não serão os caminhos da água a resposta a tantas angústias e incertezas no futuro?

Ou pelo contrário, focalizar a atenção em mais uns tantos patrimónios a preservar, ranchos de moliceiros, folcrore do Sec. XXI, não será mais um conceito perturbador do evoluir calmo e sereno em direcção ao fim-de-semana?

 Não resisto à tentação de referir um certo momento de imponderabilidade que caracteriza este final de milénio. Mas vejam só o que a palavra imponderabilidade fez por Veneza.... Nesta cidade irreal, existe uma norma regulamentar fixa desde a sua origem. Uma norma constante e intransponível mesmo pelos mais poderosos e que sobreviveu a todas as evoluções e transformações de séculos.  Uma norma muito simples. Essa norma é a cota de soleira, definida pelo nível da água, presumo que na maré alta. Este aspecto aparentemente irrisório produzirá a estabilidade necessária ao imaginário, por vezes irreal que a cidade encerra.

No relacionamento de Ovar com a Ria será da máxima importância a definição e assimilação de regras. Este processo regulamentar que estabelece modos de relacionamento chama-se planeamento.

Mas o Planeamento para ser eficaz tem de brotar da cidade, percorrer as suas vielas, histórias e segredos, dunas e canais, canaviais e milheirais, não pode cair de pára-quedas. É perigoso e pode apanhar muita gente desprevenida.

 

Não temos uma cultura de Planeamento. Temos, sim, uma cultura de permeabilidade. Daí o necessário esforço e a urgência na elaboração de regras que definam todos os aspectos de transformação e evolução da cidade. Se assim for não nos sentiremos perdidos no meio da derrocada de edifícios antigos de azulejos tão bonitos, no meio de novas e aparentemente incompreensíveis linguagens arquitectónicas, eventualmente tão feias. Que contemporaneidade esta de banheiras de hidromassagem com beirais de aba e canudo, de azulejos rústicos ornamentando Video-Walls, ou até de festivais de tarjetas publicitárias engalanando as ruas de vento em popa. Só falta a  Cláudia Shiffer de bigode, para promover a preservação do património...Porque o património também se constrói e a melhor forma de o preservar é promover a sua utilização. Com regras.

 Terminando, queria ler uma frase, salvo erro de Camilo Pessanha, cuja horizontalidade sugere uma breve viagem pela Ria, uma de entre muitas possíveis, daqui, até um Puxadouro qualquer, 

 

Na messe que estremesse enlouquece a quermesse e o sol esse Celestial Girassol, esmorece.

 

 Ovar, 6 de Outubro de 1999

 Helder João Ventura.

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