Memórias do Maine


... O que parecia um Sábado monótono acabou por se tornar num dia interessante. Logo pelas 7.30 já estava a caminho do pequeno almoço, começando a manhã com uma conversa com o meu vizinho de campo e de classe, o Buddy, da Virgínia, que, com um sotaque inimitável fazia conjecturas em visitar uma loja de ferramentas em segunda mão, muito comentada nas classes e famosa pelas suas ferramentas originais e raras. Takahiro, o japonés, também estaria disposto a visitar a loja e assim fazer companhia a Buddy... Eu após o pequeno almoço procurei o escritório da escola para ter acesso à inter-net, falar para casa, actualizar bolgs, ver o mundo exterior. Mas, nesta manhã o escritório, excecionalmente, estava fechado.... coisa rara, mas afinal, era sábado.
Devo referir que por aqui não existem portas fechadas... com chave. Nem mesmo os quartos...
Andei por ali de bicicleta entre a casa dos barcos e as oficinas, ainda estava a decorrer a classe da Silvia, a italiana, do Steve, do Minesota e do Michael, da Nova Escócia... Pessoas com quem velejei no "Shenenaganz", o grande Catboat da escola e com quem possivelmente nunca mais me encontrarei, nem consegui despedir-me deles... coisas da natureza das viagens.
Após o almoço, um muffin com queijo e ham ( do melhor) manteiga, alface, parti novamente para a frente maritima, a ver se conseguia velejar no "Ospray" um clássico que tinha sido lançado á água pela manhã ali perto, em Brooklin Harbour, local de uma simplicidade e beleza tão comuns nestas paragens.
Como não se vislumbravam as velas do "Ospray" no horizonte, Mike, da casa dos barcos, sugeriu que eu fosse velejar com Niko, que se encontrava no "Herreshof 12" e que andava lá longe,solitário, na sua viagem solitária...
Largámos na lancha em boa velocidade, em busca de Niko que se encontrava perto de uma pequena ilha no limite da área visível, da qual se aproximava, velejando e preocupando Mike. As margens destas ilhas são em rocha bem esculpida pelos glaciares, de diversas formas redondadas,  intercaladas por pequenas enseadas de areia de elevada granulometria... As águas, escuras e limpas, profundas, permitem a aproximação até ás rochas, sem grande problema, mas as regras de utilização dos barcos não permitem o desembarque, pelo que ficamos com aquela sensação da maçã proibida...
Ao aproximarmo-nos do "Herresho 12", depressa nos apercebemos de que Niko não queria companhia. Não se mostrou nada satisfeito com a nossa presença e muito menos com a ideia de um novo tripulante a bordo. Mas uma insisténcia e mais uma palavra de Mike, eis que me instalei a bordo do pequeno veleiro  velejando com Niko V. , um servo-croata, puro Jugoslavo educado nas universidades de Tito, a quem nutria um ódio de estimação muito sincero. Um personagem de carácter bem marcado e firme, culto e introvertido, de acentuado espírito crítico. Abandonou a sua terra escapando ao regime fechado de Tito, foi para Itália e daí para a América. Contou-me que quando os ingleses afundaram o "Bismark", tinha ele poucos anos de idade, o seu avõ, discretamente, deu uma pequena festa em casa. Segundo ódio de estimação: os alemães e por arrastamento, o Império Austro-Húngaro. Muito curioso este Niko que desde o episódio do Bismark iniciou um processo de crescente estima pelos ingleses.
Depois de umas horas de vela entre as ilhas de Bluebay, onde nos revesávamos no leme e nas mareações, a bordo de um extraordinário pequeno veleiro, estávamos obviamente bem dispostos. Ao chegar ao pontão de desembarque, lá estava o "Abigail", um Yawl de uns 15 metros, que se encontra disponível para venda e para restauro... Um barco de sonho para Niko, e acessível pelo que vi, mas o facto de necessitar de restauro não o entusiasmava. Entusiasmáva-o sim a ideia de irmos jantar a qualquer lado. Eu claro que sim, desde que "me sobre dinheiro para regressar a Portugal", ironizei.
Quando chegámos a "Moutain hash" o refeitório/dormitório com uma sala de estar repleta de livros e revistas, sofás e candeeiros e muitas gravuras e fotos nas paredes, lá estava Bob, o médico reformado que completa 17 anos de frequencia nesta escola de cultura naval. " It seems that I`m a slow learner" ironiza o Bob. excelente pessoa, antítese de Niko, amigos de outras estadias na Wooden Boat School. Queres vir jantar? perguntou Niko. Claro que sim. E lá combinámos o jantar, que entretanto já estava marcado, num ápice Niko discretamente telefona e pronto... Pelas nove da noite lá estávamos no "Brooklin Hinn", ambiente muito doméstico, casa transformada em restaurante, cortinas e tecidos... Comi salada e um peixe tipo alabote, um vinho tinto Italiano, muito bom. Durante o jantar passámos pelos dramas e sofrimento da Jugoslávia e do seu desmembramento, pelas idiossincrazias do fascismo portugués, da guerra colonial, da integração europeia, da Alemanha e pronto, lá estávamos nós a falar novamente da Alemanha... e zás, chagamos á América! Niko simpatizante dos republicanos, crítico feroz de Obama e do seu programa de saúde, e Bob, democrata e tolerante, criatura dócil e atenta á natureza humana e ás suas fragilidades, simpatizante, tal como eu, de Billy Carter e dos programas de saúde de Obama. E o mundo da comunicação social, os Média e o seu poder, a veracidade da democracia americana...
 Mas as divergéncias, bastantes e clivantes, não nos impediam de confraternizar e de ir cimentando uma amizade que espero perdure para além das distâncias.
Saímos do restaurante tarde, deram-me boleia até á tenda, noite escura e fria. Adormeci a ler o livro "Rio das Flores" de M.S.T. e a sonhar velejar nas águas do Maine com o meu "Vouga" fazendo projectos nas encostas suaves das ilhas desertas e verdejantes que brotam em redor. Tufos de verde flutuando á deriva na planície de água calma e profunda.





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