A cidade de José Maria

Conheci José Maria da Graça, o "Zé Maria Bacalhau"  numa manhã de Verão, quando a minha mãe me levou á biblioteca de Ovar para escolher livros para ler nas férias.

A biblioteca funcionava no Rés-do-chão do edifício da Câmara Municipal e tinha estantes de vidro de alto a baixo, de um lado e de outro das paredes, e uma secretária ao fundo onde estava sentado um senhor de óculos muito espessos, o que lhe conferia uma presença distinta e inconfundível. Quando se levantou para nos receber percebi que não era apenas o olhar que nos marcava, era também o modo de caminhar... Após saudações entre velhos conhecidos, e a apresentação do rapaz de nove ou dez  anos iniciámos um lento deambular pelos livros, ao longo das enormes estantes da biblioteca municipal, escolhendo as minhas primeiras leituras de férias. E foi assim que conheci este personagem, responsável pelos primeiros livros que li, fora dos manuais escolares. Não me lembro de todos, mas um deles descrevia "As aventuras de David Crocket", “Daniel Boone”, “Tom Sawier e outros heróis aventureiros.

Li aqueles livros todos (e eram muitos!) durante as férias, e não tenho a menor dúvida que aquele gesto da minha mãe, e as escolhas de José Maria da Graça contribuiram e muito e para o meu gosto pela leitura e mais do que isso, para a descoberta dos livros das bibliotecas, mas sobretudo das aventuras que ainda hoje me fascinam, mesmo aquelas dentro do nosso microcosmos íntimo e pessoal. De modo elegante, o bem vence o mal, e as dificuldades serão sempre ultrapassadas!

Ainda não sabia das potencialidades deste homem, e muito menos do seu percurso pelos meandros do poder local, na Junta de Turismo, na consolidação e organização do Carnaval de Ovar, onde foi o principal impulsionador, na projecção das procissões Quaresmais, na implementação de provas oficiais desportivas, de corridas de minis, de minipuzles e concursos de construções na areia, e sei que muito do trabalho de bastidores na animação e qualificação das praias era realizado pela Junta de Turismo do Furadouro, onde pontuava a acção deste  homem, sério, dedicado e amante irredutível da sua terra, mas sobretudo com uma visão de desenvolvimento assente num permanente diálogo entre tradição e modernidade.

Hoje, ninguém se atreve a desprezar esta evidência, mas nos fulgores de uma revolução ineficaz na implementação de mecanismos de reforma, e mesmo durante a consolidação da democracia pelos anos 80, assumir uma postura assente no caracter identitário eminentemente cristão e de valores tradicionais, e  na modernidade resultante das viagens de comércio, da imigração e do desenvolvimento industrial, não era fácil e prestava-se a imensas mal-interpretações e a estigmas injustos e demagógicos.

E o Sr. José Maria sofreu muitas destas injustiças, vivendo desde então sob um determinado saneamento cultural, nunca deixou de lutar activamente pelos interesses de Ovar, que são os interesses das pessoas que aqui vivem.

 Como homem culto que era, sempre defendeu a especificidade pós moderna da realidade Ovarense, postura que agora sim, se reconhece na sua visão holística e abrangente a todas as sensibilidades. (Veja-se o tempo dedicado ao património religioso na última edição de "Verão Total" na RTP...).  "Mais vale tarde do que nunca" diria J.M.G.

Era um homem culto, e acertivo como poucos. Talvez demasiado modesto. Um dia, a propósito de uma colaboração para o "Terras do Var", disse-me Pompílio Souto, "se queres saber da História de Ovar, fala com o Dr. Alberto Lamy, se queres saber Histórias de Ovar, fala com o sr. José Maria "Bacalhau". E o sr. José Maria sabia muitas, pois lá fui eu de gravador em riste, e papel pouco, entrevistá-lo para o tal artigo sugerido pelo director do Jornal, Carlos Mendonça.
Logo á entrada da sua casa, onde pontuava uma escadaria e uma salinha ao lado, impôs uma condição: "nada de gravadores". Fiquei sem saber o que fazer, mas perante a minha perplexidade, disse. "Mas podemos conversar..."  E portanto esta " não entrevista" aconteceu, em modo de conversa, (ele até me emprestou-me a esferográfica), mas da conversa não ficou qualquer registo, e que interessante seria...

 E quando fui confrontado com o Carlos sobre o artigo de jornal, respondi-lhe que não tinha havido entrevista... tal era a vastidão da mesma.

Desde então, sempre que os meandros da cidade nos faziam encontrar, onde recordo os seus lentos passeios na marginal do Furadouro, tinhamos sempre tempo para uma troca de opiniões, com Ovar como pano de fundo, e as decisões políticas a temperarem as suas indignações. Ele via o que todos viamos, a permanente e constante perda de protagonismo de Ovar na Região, os investimentos de carácter eminentemente político nas freguesias do Norte Concelho, ( Esmoriztur, por exemplo) e as consequências de uma ausência de visão integrada de desenvolvimento turístico...

Agora que ele já cá não está, resta este amargo de alma ao sabermos que ainda temos de aprender muito para saber lidar com aqueles que, como JMG, têm um amor demasiado grande pela sua terra.

Comentários