"O crepúsculo dos deuses…"


“-O meu quintal dá para o convento de Mafra, e então observo as recrutas… Ena! agora que sou velho é que a tropa é feita por mulheres… e que mulheres! Uma é mesmo um espanto! È a chefe ou lá como se diz, que eu não fui à tropa! Ela comanda aí um pelotão lá isso é. Impressionante, ó Zé aquela voz! Parece um homem! Como ela grita! Só lhe falta dar pontapés! Parece que nasceu para aquilo, aquela mulher. Sobe aos postes, àquelas redes, faz tudo. Será mesmo mulher? È, é uma mulher, com aquela bóinazinha bicuda e o cabelo enrolado, um puchinho enfiado lá dentro…. Eu do meu quintal vejo tudo… Pois, porque de resto, o que é que faço? Agora é só comer e dormir.. O que é que eu estou a fazer por aqui? Mas aquela tropa, agora sim… agora que sou velho… bem, vou embora antes que diga mais burrices “.

E assim se despediu o amigo do sr José, “Zé da Pitarma” mais concretamente, em Pardilhó, (mas para os amantes dos barcos e da ria será sempre o sr. José de Pardilhó) a quem hoje fiz uma visita. Lá fui e para além da conversa que fluía, ele sentado num banco pequenito a apanhar os últimos raios de sol de Outubro, sentindo calor, apesar do vento forte que se sentia lá fora, o estaleiro arrumado, ou seja, na sua melhor arrumação que eu por lá vi, nenhum barco á espreita, a não ser aquele misterioso casco de um veleiro da velha escola, todo negro madeira à vista. Linhas esbeltas. Um verdadeiro clássico… Fico sempre maravilhado com este casco, e pelo meio da conversa vou sonhando…
Mas hoje não me detive muito à volta do misterioso casco. È que surgiu de repente, de automóvel, um amigo do sr. José. Um amigo a sério. Daqueles da escola primária, e da inspecção à tropa e das correrias pelos campos e dos primeiros empregos na carpintaria naval , em Pardilhó, no bico da Murtosa, e das infindáveis viagens para o trabalho, duas horas para lá duas horas para cá…para ganhar 5 escudos por dia. E como eles se conhecem! E como se alegram por se verem ainda vivos!
”Mas no verão… saíamos ás 5 e chegávamos às nove… já está a ver o que era.”
Pois estou. As correrias pelos pinhais as quintas com fruta, as aventuras e as descobertas. “- imagine lá que um dia estava um indivíduo a fazer um poço, no meio do pinhal, para uma casita que se estava a fazer, e lá no fundo, a uns quatro ou cinco metros, não, a sério Zé, quantos seriam ? “ - Eram pelo menos três” , “ - Pois eram três metros de profundidade, e a essa profundidade no meio do pinhal, uma proa de bateira, inteirinha, muito bem preservada! Como é possível ?…”

Desde logo imaginei o tempo necessário para que a água recuasse tanto e o pinhal se formasse, com três metros de duna acima da “bateira”, seria uma bateira? Nem me atrevi a fazer a pergunta, pois estava em presença de dois carpinteiros navais… O que se pode concluir é que as bateiras como as conhecemos já andam por cá desde o início da nacionalidade…

E ainda as histórias do professor coxo, na primária, dos amigos todos com alcunhas, e cada uma! E do parceiro de trabalho sovina, e tantas outras microhistórias que hoje ouvi, da faina de aproar a vida a Àfrica, ao Congo, e as caçadas em Moçambique com sapatos feitos à mão pelos amigos de Pardilhó, “ - sim tenho destes botins desde sempre, não gosto de calçar outra coisa, a estes nem os sinto..” E eram bonitos e adivinhava-se qualidade…
A mesma qualidade da conversa e das histórias… Então o que o traz por aqui perguntou o sr. Aleixo e eu sem jeito, que gostava de barcos e de carpintaria naval, “- pois olhe já veio tarde, no crepúsculo, se viesse antes… aqui este homem...”, apontando para o sr. José.
“Não, não é verdade” , menti eu, “não cheguei tarde, já vi aqui construírem barcos grandes como este aqui, estão na Costa Nova…”

E agora sim, não resisti e dei mais uma volta ao velho veleiro ali arrumado, rodeado de madeirame. Um mastro para um sharpie 12 m² ali ao lado e o seu próprio mastro, suspenso, no tecto. Observei as ferragens, ainda estão lá as adriças, os parafusos a espreitarem, os moitões. Por momentos abandonei os velhos amigos na sua conversa, detive-me a observar as pinturas nas paredes, testes de tinta que escorrem pela madeira compondo abstratas composições dignas de Pollock, evoluindo numa espessura de centímetros, espessura que reflete o número de barcos que ali aportaram ou dali partiram para a primeira viagem, ainda muito longe do tempo de serem descobertos sob as areias de um deserto qualquer, talvez na Namíbia…ou sob uma duna formando-se sobre um esteiro. O fim dos barcos e o fim dos homens por vezes, tocam-se.


Comentários

almagrande disse…
Boas Helder, belo texto. Como deves saber já lá tive tardes dessas a ouvir as histórias deles e de alguns que por lá vão passando.Uma verdadeira delícia.
A portada de "Pollock" já foi alvo de várias ofertas de compra, sempre recusadas.
Um abraço