Por momentos, parou de chover...

Cansados de adiar a revolução, eis que por um dia lembrámos a revolução. Mas a revolução hoje, é muito mais complexa e difícil. Nos anos 70 bastavam uns chaimites, uns heróis de cravo e G3, uma guerra sem sentido, alguns oficiais determinados, um país á deriva pelos mares de um império sem destino, olhos das crianças negras brilhando nas árvores sustentando uma ideia de Àfrica nossa, á mistura com muitas bandeiras de papel acenando acenando, era isto o império que defendiamos.
Por cá adiavamos o rectangulo, brincávamos aos pescadores em epopeias marítimas rumo à Terra Nova, recebiamos os soldados e as suas histórias de pretos e de aventuras no mato, e defrontavamos os tiros nas surreais cerimónias funebres nos regressos dos heróis mortos. E os gritos das mães junto aos caixões que desciam... um filme inesquecível para quem o viveu.

Naqueles tempos a revolução era simples.

Hoje temos que fazer uma revolução continuada no quotidiano, coisa difícil, se vemos apenas sinais de pragmatismo económico, de pequenos circulos paralizantes porque pequenos, num território de anulação de diferenças, onde a uniformidade, o bom comportamento, as regras democráticas estreitas e paralizantes, muitas décadas de chuva, de cravos murchos e descoloridos nos apontam o caminho da indiferença...
Por esquecermos uma dimensão importante da revolução.
A descoberta da dimensão utópica da vida, essa a lição mais desconcertante que o 25 de Abril nos forneceu. Não a todos, felizmente muitos tiveram acesso a esse deslumbramento por via outros processos de crescimento intelectual, ( ...) . Mas a democratização da utopia, essa a grande dádiva do 25 de Abril de 1974.


Fiquei portanto contente com o discurso do nosso presidente da Câmara, após as músicas de Zeca Afonso. ( Que nome, Zeca Afonso. Duas dimensões, a do "zeca", o mais popular e anónimo cidadão e a do Afonso, nome de reis e de grandes conquistas, de homens fundadores, primordialmente revolucionários .)

E pela solenidade do evento , não deixei de sentir na sala um sentimento de respeito e porque não dizê-lo, de grande espiritualidade. Tratava-se de um ritual, de uma homenagem a algo que nos faz falta, que nos é essêncial. Percebemos melhor o sentido desta nossa terra se lhe colocarmos uma atmosfera de optimismo e de conquista de uma utopia no dia-a-dia , das nossas vidas

Eu cá vou fazendo o que a minha condição intermitente de cidadão me permite, levantando ruinas dos lodos da Ria, recuperando barcos, dando uns palpites aqui. E por vezes
ali e ali
A ria e a possibilidade de desenvolvimento de acordo com um território que já não é mas pode vir a acontecer novamente.
A ria de Ovar, a navegabilidade, barcos e férias grandes e passeios até S. Jacinto, regatas e piqueniques, vernizes e vaidades, que se diluem pela natureza, pela rude e inóspita natureza, com quem devemos dialogar para percebermos a diferença, essa utopia inalcansável pelos gabinetes , pela literatura ou pela ópera. O diálogo necessário com o vento, elemento primordial da nossa identidade.