Me, te, lhe, se, si, sigo, digo, que hoje me apecia ser poeta.
estar de novo sentado na cadeira da escola, ali pelas quartas classes. observar o sol que entrava pelas janelas altas, que inundava aqueles tectos altos e do outro lado do recreio, os pífaros e os trompetes, por vezes um obué, orquestra de sons abafados das raparigas que já lá estavam, no recreio.
Eram recreios separados, Sexo Masculino, Sexo Feminino. Um dia perguntei á minha professora o que queria dizer sexo. não percebi a resposta. e sei que repeti a pergunta penso que na catequeze. não me lembro da resposta. aquele recreio e aquelas palavras eram enigmas. Até espreitar o recreio das raparigas era proibido. Havia um professor que castigava os rapazes que fossem apanhados a espreitar o recreio das raparigas.
Elas lá andavam, de batas brancas e vestidos longínquos também brancos, tudo muito branco, muito distante, naquela luz de tréguas outonais.
E havia delatores, aqueles que acusavam, julgando tirar proveito das suas denúncias, "sr. professor o Guerra estava a espreitar o recreio das meninas" , e lá ia o Guerra limpar o pombal da escola que era do professor e que estava sempre uma imundice. eram uma espécie de trabalhos forçados, aqueles castigos. um dia o Guerra decidiu não limpar. tentou fugir. veloz, lançou-se numa fuga atravéz do recreio e o tal professor, que nunca admitiria um não de um aluno, muito menos em frente de todos, correu também a apanhá-lo. vestido de fato cinzento, que outra cor poderia ter , e calçado com sapatos pretos de verniz, lançou-se na perseguição. no virar da primeira esquina, já o guerra, descalço como sempre, estava a contornar uma outra, escorregou o professor no saibro húmido, e derrapou pelo pavimento em estilo totalmente descontrolado, colorindo de amarelento-torrado o cinza pardo da vestimenta. risos e gargalhadas em andamento "allegro", levanta-se o professor, um riso amarelo, reforçado pelo dente de ouro que tinha de lado, observa os estragos causados pela lama, sacode as mãos, impotente perante a humilhação da queda, desiste... a orquestra de risos passa a pianíssimo, o Guerra esse ninguem mais o viu na escola.
para mim este momento teve um significado muito importante. hoje diria da constatação de algo enebriante e vertiginoso, a queda de um mito. mas o irreverente Guerra, o ponta de lança da equipa, o aventureiro que saltava os muros mais altos, ficou para sempre insubstituível na turma.
Quanto ás raparigas, julgo ainda não ter ultrapassado totalmente a separação dos recreios, e ainda não consigo espreitar por aquele buraco de fechadura de uma porta de chapa verde, pois era por aí que se espreitava. Havia no entanto um outro caminho, rodeando a cantina, onde se poderiam observar as pequenas de modo mais digno, junto a uma amoreira, a caminho de casa da professora. E elas fingiam não reparar, reuniam-se em pequenos grupos, e lançavam mais uma vez os sons de agora mais claros pífaros, trompetes, obués, trompas, por vezes uma flauta. Hoje, passados uns anos, ocorrem-me outros sons, outras possibilidades, mais ao estilo do free jazz... improviso outonal sob a amoreira que ainda lá permanece, apesar do sol, esse celestial girassol , que esmorece.
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